Otacílio Assunção Barros, mais conhecido como Ota, é desenhista, cartunista, quadrinhista, escritor e editor. Fez fama atuando por muitos anos na revista Mad, mas seu trabalho vai muito mais além da revista. Publicou trabalhos pra diversas editoras e colaborou com tantas outras. Seu nome está dentre os maiores editores do Brasil. Sempre renovando seus métodos de edição e publicação, nunca deixou a atualização nos meios mostrando facilidade em adaptar-se pra qualquer situação. Sua personalidade mistura o polêmico e o hilário com um carisma muito humano que só quem o conhece pode confirmar. Abaixo uma entrevista que ele nos cedeu com todo bom grado.
Orestes: Você passou um tempo como editor da Spektro e um outro longo período como editor da Mad. Havia alguma diferença no trabalho, visto que uma se trata de terror e outra de humor?
Ota: Eu era editor de umas duas dúzias de revistas ao mesmo tempo, comandei todas as publicações de quadrinhos da Vecchi que saíram entre 1974 e 1981. Havia todos os gêneros: infantil, faroeste, policial, terror, humor. Eu não trabalhava sozinho, tinha uma equipe de umas dez ou doze pessoas na redação e uns 50 ou 60 colaboradores. As tarefas eram distribuídas. Eu supervisionava tudo e não tinha problemas de pular de um gênero para outro. As revistas que eram traduzidas eram tocadas automaticamente, e as que eram total ou parcialmente produzidas, aqui tinham todas o meu dedo. E além do meu trabalho na Vecchi eu fazia roteiros como free-lancer para a Rio Gráfica. Escrevi quase mil páginas de Recruta Zero, que tinha parte do material produzido aqui.
O: Algumas correspondências mandadas para a redação da revista Mad eram extremamente agressivas à sua pessoa. Você chegou a ter problemas quanto a isso?
Ota: Hahaha! Eu nunca me preocupei com isso. Adorava ser xingado pelos leitores. No fundo eles me amavam. Vamos entender que a Mad era uma revista maluca, onde o editor xingava os leitores e vice-versa.
O: Muita gente ainda não sabe o porquê. Então, explique novamente como se deu a sua saída da Mad.
Ota: Segurei a peteca da Mad durante 34 anos em todas as editoras que a publicaram: Vecchi, Record, Mythos e Panini. Isso foi quase uma vida, nem Jesus Cristo viveu tanto. Esse período correspondeu praticamente a toda minha vida adulta. Era tempo de me aposentar. Ser “o homem da Mad no Brasil” me trouxe fama, mas ao mesmo tempo me empatou um pouco, pois as pessoas insistiam em me associar exclusivamente à Mad, embora eu fizesse simultaneamente um monte de coisas, inclusive meu trabalho autoral como minhas tiras e cartuns. Escrevi e ilustrei livros, até pra revista de mulher pelada colaborei, e pouca gente se lembra disso. Sempre associam imediatamente meu nome à Mad. O problema é que a Mad está em declínio, inclusive nos EUA. Nas décadas de 1970 e 1980 a Mad vendia muito bem. De 1990 em diante as vendas começaram a cair por causa da chegada de outras diversões baratas, como jogos, RPG, videocassete e DVDs , Internet... Antes uma criança ou adolescente só podia se divertir assistindo filmes no cinema ou na TV ou comprando gibis. No final do século XX o leque se ampliou – e isso causou quedas nas vendas dos gibis como um todo, embora a Mad tenha resistido. Mas as condições de trabalho não eram mais tão interessantes. A Vecchi e a Record me pagavam muito bem e com uma boa verba eu podia fazer uma revista melhor. Quando foi para a Mythos foi um desastre, porque o orçamento encolheu, alguns colaboradores se desinteressaram e fiquei praticamente com a peteca toda nas costas, as relações com a editora não eram muito boas. Eu estava editando e produzindo a revista praticamente de graça, e eles retribuíam me tratando como se estivessem me fazendo um favor, quando na verdade era o contrário. Aguentei aquilo calado durante anos, porque pensava que a Mad não poderia “cair em mãos erradas” e topei o sacrifício. Mas só era apunhalado pelas costas. Pensando bem, eu deveria ter parado quando a Record largou. Àquela altura eu já estava trocando meus projetos de animação e de Internet, deveria ter focado mais nisso. Quando a Mythos perdeu os direitos para a Panini, no final de 2006, pensei que o karma tinha acabado. Mas a Panini retomou em 2008 e fui chamado novamente. Note que não conheço ninguém na Panini, a briga não foi com eles. O problema é que toda a produção dos gibis da Panini é terceirizada, tudo é feito pela Mythos. Ou seja, na prática eu estava trabalhando para os mesmos caras, e as condições pioravam cada vez mais. Me ofereceram menos da metade. Mas com uma contrapartida, que dessa vez eu só cuidaria do conteúdo nacional e a parte traduzida ficaria com eles. Um sub editor interno da Mythos co editaria a revista comigo, mas eu teria o controle sobe o que saísse. Topei fazer uma experiência de três edições para ver no que dava.
Como a Mad tinha ficado mais de um ano sem sair, a repercussão na mídia foi enorme. Toneladas de reportagens saíram em tudo que é lugar, e todas falavam mais de mim do que propriamente da revista. O telefone não parava de tocar, caixa de e-mail entupida, milhões de pessoas se oferecendo para colaborar, aquilo me enlouquecia. Para piorar algumas dessas reportagens tinham perguntas cretinas. Quando um jornalista me perguntou se eu achava que ia morrer fazendo a Mad entrei em profunda depressão. Sim, me toquei, eu acabaria morrendo mesmo se continuasse lá. Para piorar, o co editor começou a passar por cima de mim e acrescentar material da lavra dele na revista à minha revelia. Aquilo foi a gota d’água. Mandei eles tomarem no cu e novamente uma saraivada de reportagens “Ota sai da Mad” etc. etc. Disse então que ia leiloar todo o meu acervo de Mad e quando isso aconteceu nova saraivada de reportagens. O leilão foi simbólico, para fechar o ciclo, embora tenha me dado um bom dinheiro. Ganhei mais no leilão do que nos sete meses desastrados que trabalhei com eles.
Lamento muito o que a Mad se tornou e procuro nem ler mais, para não me aborrecer. A revista está um desastre, sem graça, feita por amadores, com piadas copiadas da Internet, virou um fanzine produzido por profissionais iniciantes (a maioria trabalhando de graça) que querem poder dizer: “manhê... publiquei na Mad” e ouvir “Que bom, meu filho”. É amadorismo demais. Se os americanos pedissem para alguém fazer uma tradução do que está saindo, cancelariam a concessão na hora. Não digo que todos os colaboradores sejam ruins, uns poucos se salvam, mas se perdem no meio da mediocridade geral. Eu não sei a quem eles estão tentando enganar, talvez a si próprios. Mas fodam-se eles. Deixa eles ficarem nessa ilusão, tenho minha vida para tocar.
O: Porque o mercado dos quadrinhos está em decadência tanto no Brasil quanto no exterior?
Ota: Não se trata propriamente de decadência. Nunca se publicou tantos quadrinhos como agora, e mesmo os que não são publicados em papel encontram seu espaço na Internet. Ocorre que o mundo está mudando e a indústria, tanto aqui como lá, não se dá conta disso. Infelizmente os que mandam nas editoras são pessoas que não gostam de quadrinhos, consideram isso um negócio como outro qualquer, tanto faz para eles se estivessem administrando uma editora ou fábrica de papel higiênico ou outra coisa qualquer. Por isso não há uma renovação e só copiam as coisas que estão dando mais certo. Hum, mangá está vendendo? Então tome mangá. Não plantam investindo em novos gêneros. Só investem no que é lucro certo. Com isso o mercado de quadrinhos vendidos em bancas está essa lástima e encolhendo cada vez mais.
Por outro lado, as editoras de livros estão lançando mais quadrinhos do que antes e publicando trabalhos mais autorais. Na verdade eu continuo trabalhando para essas editoras sérias, que respeitam mais o trabalho criativo. Continuo amigo do dono da Record até hoje e produzo para eles as edições dos novos álbuns de Asterix e a maioria das edições de quadrinhos que eles lançam. Além da Record ainda trabalham para outras editoras. Além de mil outras coisas que faço.
O: Você ainda lê quadrinhos? O quê especificamente?
Ota: Basicamente leio com regularidade apenas as tiras da Folha de S. Paulo. Isso é todo dia. Mas acompanho por alto o que está sendo feito em termos de trabalho autoral. Quando aparece algum livro novo como Persépolis, da Marjane Satrapi, leio com sofreguidão. Super-heróis nem pensar, não tenho mais tempo pra essas bobagens.
O: Você teve duas passagens pela cidade de Manaus, que é uma cidade bem exótica em comparação à outras capitais brasileiras. Como foram essas passagens e quais as melhores lembranças (ou as piores) que você poderia destacar?
Ota: Bom, o calor e umidade daí são meio dose pra quem não está acostumado, né? Não sei como vocês agüentam. E olhem que sou carioca e aqui também faz calor a maior parte do tempo. Bom, gosto de muitas pessoas daí, amigos que conheci da primeira e reencontrei da segunda vez que fui. Não tenho problema em voltar, desde que não me coloquem de novo no mesmo hotel. Armei o maior barraco porque justo na hora que ia passar um episódio inédito de Heroes o sinal da TV a cabo caiu. Não se faz esse tipo de coisa comigo.
O: Recentemente você lançou o “Relatório Ota Do Sexo”. Como tem sido a sua aceitação e qual o diferencial dele?
Ota: A aceitação foi melhor do que eu pensava. As resenhas foram todas positivas. Ainda não está vendendo o que eu gostaria que vendesse, mas a Leya é uma editora relativamente nova no mercado e ainda não conseguiu solidificar a distribuição. Mesmo assim já vendeu mais que um livro de quadrinhos normal. Vamos ver a continuidade disso. O contrato que assinei com eles é para três livros e este ano saiu outro Relatório Ota lá pelo meio do ano.
O Relatório Ota é o que me tornou mais conhecido, não só porque começou a sair regularmente quando a Mad estava no seu apogeu como se tornou uma das principais atrações da revista na sua fase boa, ajudando a consolidar meu nome. Mas o material está sendo todo reciclado e atualizado, não é uma simples republicação do que saiu antes. O Relatório Ota Do Sexo tem mais da metade de material inédito, além de ter sido totalmente redesenhado. O Relatório Ota Da TPM é completamente inédito. Essa coleção Relatório Ota vai ter incontáveis volumes, divididos por temas específicos.
O: Qual o seu próximo projeto?
Ota: Estou trabalhando em MUITOS projetos ao mesmo tempo, na verdade minha jornada de trabalho começa às seis da manhã. Não posso falar de todos porque alguns são secretos e envolvem cláusulas de confidencialidade. Mas posso dizer que poucos envolvem quadrinhos no estilo tradicional, o que eu estou tentando é transpor a linguagem dos quadrinhos para as mídias atuais. Os tempos das publicações em papel estão contados.
O que pode ser falado está sendo divulgado no The New Ota Times, que pode ser acessado no meu site. Basicamente meu projeto maior para este ano é um game para crianças de 6 a 10 anos que vai ser adotado em toda a rede escolar brasileira e ensinar a molecada de todo o país História do Brasil de uma maneira divertida. É algo completamente diferente do que o meu público tradicional está acostumado, na verdade é para os filhos e netos deles. Recebi um generoso patrocínio do Oi Futuro para desenvolver esse jogo e essa é minha atividade principal no momento. Está sendo um novo desafio e me deixa feliz porque vou ajudar muita gente e fazer a cabeça das novas gerações, colocando os valores certos na cabeça deles. Tive a idéia desse jogo jogando esses jogos de Facebook tipo Máfia Wars, onde você tem que virar um mafioso e roubar bancos e matar pessoas. Quando estava jogando pensei: “Hum, e se eu fizesse um jogo do bem?”. Assim, em vez de (no caso do Jogo da História do Brasil) a pessoa crescer no game montando uma fazenda e tendo milhares de escravos, ganha mais pontos se ajudar os escravos a fugirem para o quilombo. E também encarar de outro lado a questão indígena. Não vou negar para as crianças que houve o genocídio indígena, mas a abordagem é mais coerente e humana. Quero ensinar as crianças que estão em formação agora a crescerem e construírem um mundo melhor que o atual, que está podre. Meu sonho é ver crianças de norte ao sul do país jogando o meu joguinho, que ainda por cima é grátis porque é feito com patrocínio e não visa lucro. No dia que eu souber que uma escola de um município remoto do Amazonas ou do Acre adotou o jogo e os alunos aprenderam, vou ficar extremamente feliz.
O: Fale sobre a produção do filme longa metragem que será baseado na pessoa de Ota.
Ota: Esse filme é um presente que caiu do céu e vai ajudar a fazer a transição do Ota antigo para o Ota atual. Um amigo meu, Franz Valla, ficou insistindo que minha vida daria um documentário, porque as confusões que aprontei foram muitas e passei por todas as editoras e manifestações da cultura pop como uma espécie de Forrest Gump tupiniquim. Não é bem um filme sobre minha obra, mas sobre minha vida e meu jeito louco de viver. Ele mostrou o projeto para a Tatiana Issa e ela arregalou os olhos e se interessou. E acabou tomando o filme pra ela, disse que merecia não ser um curta, mas um longa, e que era justamente um projeto desses que ela e o Raphael Alvarez (que co dirige os filmes com ela) estavam procurando. Eles conquistaram muitos prêmios internacionais com o filme dos Dzi Croquettes e querem continuar nessa linha, resgatando ícones culturais dos anos 70 e 80. O Franz em vez de diretor agora é o produtor executivo do Ota The Movie. Mas o melhor ainda é que esse não vai ser um documentário normal, não é só um monte de pessoas sentadas falando por que me amam ou me odeiam, ou que fui editor da Mad ou Tex e escrevi Recruta Zero. Isso vai ter também, mas é muito mais do que isso. As cenas da minha vida vão ser todas dramatizadas, enquanto as pessoas contam o que se lembram, o Igor Cotrim vai fazer o papel do Jovem Ota e também de todos os meus antepassados. O filme começa por volta de 1900, quando meu bisavô materno raptou a cavalo a minha bisavó porque o pai dela não queria consentir no casamento porque meu bisavô era descendente de escravos e, por outro lado, em Portugal, meu tio-avô bebeu toda a produção de vinho da adega da família junto com outros pinguços, levando a vinícola à falência e obrigando meu avô paterno a vir tentar a vida no Brasil, onde ele conheceu a minha avó e casou com ela, ajudando a fundar a “dinastia Ota”, que uns 50 anos depois deu em mim. O Igor é o melhor ator brasileiro do momento e seu desempenho como Madona no longa Elvis E Madona do Marcelo Lafitte é impecável. E ele tá adorando fazer o papel de Ota. Na verdade nos parecemos muito, não fisicamente (porque ele é bonito e eu sou feio), mas no jeito de pensar.
Eu não sabia que a Tati e o Igor eram tão meus fãs assim. Todos estamos muito empenhados nesse filme, e no momento Tati e Raphael estão correndo atrás do patrocínio.
O: Obrigado pela entrevista. Deixe seu recado para os leitores do blog do Clube Dos Quadrinheiros De Manaus.
Ota: Bom, com essas novas incursões minhas na área do cinema, vou acabar indo pro Festival de Manaus quando o filme ficar pronto. Me aguardem que vou voltar.
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