Por: Vicente Cardoso
Em 02/12/1999
Uma
cidadezinha de beira de estrada, no calor da tarde. A paisagem era
desolada, dividida em duas cores: o azul do céu sem nuvens, e o
quase-laranja do chão árido do deserto, estendendo-se até o
alcance da visão. Um veículo de quatro rodas, semelhante a um jipe,
aproximou-se da cidade, parando em frente à única construção que
não parecia triste e desolada, como todas as outras casas: um
saloon.
Lá
dentro, música alta e gargalhadas – misturadas com palavrões,
gabolices e lances de jogo. Uma típica comemoração da escória,
pensou a motorista. Tirou seus óculos sujos como seu rosto e ao sair
do carro tentou espanar a poeira de sua roupa, sendo apenas meio
bem-sucedida. Entrou no bar e deparou-se com o espetáculo
degradante. Uma dúzia de homens espalhados pelo saloon, sentados nas
mesas ou nos bancos do bar, bebendo, jogando ou simplesmente narrando
suas últimas aventuras. Do andar de cima podiam-se ouvir mais
risadas, gritos e gemidos femininos – típicos ruídos de
fornicação. (Não que ela não se excitasse ao pensar nessas
coisas, mas no momento ela estava ali por outros motivos).
Dirigiu-se
até o bar e pediu uma bebida leve. Todos os homens, é claro, já
haviam notado sua presença desde que havia passado pela porta. A
admiração por seu belo corpo a divertia. Sabia que possuía
atributos desejados por muitos homens – e invejados por algumas
mulheres. Para realçar sua voluptuosidade natural, trajava peças de
couro justíssimas, que expunham apenas seu rosto, seus braços e
parte de seu ventre – mas ninguém repara nessas coisas quando se
tem seios, coxas e nádegas nas proporções que os homens se
acostumaram a rotular como...
-
Gostosa! – gritou um dos “cavalheiros”.
Fingiu
que não era com ela. Sorriu e dirigiu-se ao barman:
-
Estou procurando um homem.
“Veio
ao lugar certo, gatinha” disse um sujeito alto e forte, com cara de
quem liderava o bando. Sentou-se no banco ao lado dela e começou uma
cantada suja e desajeitada. “Definitivamente, esse cara é um
desastre com mulheres”, pensou ela. Na certa era do tipo que
encontrava prazer apenas com prostitutas – só mesmo sendo paga
para perder tempo com um idiota daqueles.
Cansou-se
do papo e decidiu ir direto ao assunto. Estava procurando Chacal, o
líder de uma gangue de assaltantes de bancos que se encontrava
foragido. Mentiu dizendo que sempre havia sentido uma enorme
admiração pela audácia e coragem do famoso bandoleiro, e que os
relatos femininos sobre sua indiscutível virilidade o haviam
transformado num ídolo para ela – alguém para quem ela adoraria
se entregar e satisfazer suas mais loucas fantasias. Ao terminar sua
atuação, surpreendeu-se com sua inacreditável cara-de-pau.
Seu
truque fisgou o marginal. Ele era o próprio Chacal, o bandoleiro
mais procurado em cinco estados, matador de policiais e blábláblá.
Fez um avanço em direção à jovem, mas ela foi mais rápida;
ajoelhou-se à frente dele e começou a acariciar seu membro por cima
da roupa. “Você é meu herói! Deixe-me provar minha admiração
fazendo-o sentir-se nas nuvens!”. Todos os homens no saloon
(incluindo o barman, que pensava já ter visto todo tipo de coisa)
ficaram boquiabertos. Teriam atacado a garota mais cedo ou mais
tarde, se ela já não tivesse atraído a atenção de seu líder.
Ela
não perdeu tempo: iniciou ali mesmo, na frente de todos, uma felação
no feliz bandido. “Você é uma profissional, não é? Vadia
sem-vergonha...” Inesperadamente, ele soltou um urro de dor – a
garota sem o menor aviso cravou seus dentes em um de seus testículos,
até sangrar. Enquanto ele caía no chão, segurando seus órgãos,
ela ergueu-se e sacou duas pistolas que estavam ocultas sob sua
jaqueta, apontando-as a esmo.
-
Caçadora de recompensas Classe P-28: Cassandra – identificou-se.
Na hora, os bandidos recearam em sacar suas armas – ela era mais
rápida, e poderia atirar no primeiro que tentasse erguer sua
pistola. E além disso, ela havia derrubado o líder! “Tenho
permissão para levar apenas o Chacal! Vocês acham que vale a pena
entregarem suas vidas por ele?” desafiou ela, contando com sua
experiência sobre o fato dos criminosos serem uma classe desunida e
traiçoeira.
Três
deles tentaram provar que ela estava errada. Sacaram suas armas e
foram mortos sem um instante de hesitação da caçadora. O restante
dos baderneiros pensou bem e voltou ao que estavam fazendo – jogar
cartas e se embebedar. Chacal estava furioso com a traição de seus
companheiros, mas a excessiva dor em seu testículo mastigado o
impedia de ofender suas mães, irmãs, filhas e esposas. Quando deu
por si, já estava algemado, amarrado e amordaçado sobre o capô do
jipe da caçadora. Ela limpou o sangue de seus lábios e queixo, e
numa voz doce dirigiu-se ao barman:
-
Moço, posso usar seu telefone?
A
centenas de quilômetros dali, numa paisagem completamente
diferente...
Numa
bela floresta, com árvores tão altas que quase cobriam o sol, uma
jovem debruçava-se à beira de um córrego. Usava roupas comuns e
modestas, típicas de uma camponesa. E fazia algo igualmente típico:
lavava suas roupas, esfregando-as com sabão, torcendo-as e
batendo-as contra uma pedra, antes de enxaguá-las novamente no
riacho. O suor acumulava-se em sua testa e pescoço, mas o esforço
expresso em seu rosto não conseguia enfear suas belas feições.
Contudo, as múltiplas tarefas domésticas quase a impediam de ser
vaidosa. Suas mãos, por exemplo, eram pequenas mas não tinham nada
de delicadas: eram calejadas e agarravam firme, após anos fazendo
coisas como cozinhar, lavar, passar e carregar mantimentos. Sabia que
era bonita, mas não costumava perder tempo pensando nisso. Na
verdade, ela precisava terminar sua tarefa enquanto o sol ainda
estava alto no céu, para que ela pudesse pôr as roupas para secar e
logo depois aprontar o almoço.
A
alguns metros dela, um menino sentava-se no galho de uma goiabeira.
Era visivelmente mais jovem que ela, apesar da diferença de poucos
anos de idade. Ele também vestia-se com modéstia, e carregava no
colo algumas goiabas, que mastigava com gosto e sem pressa, enquanto
admirava a irmã. Mesmo ocupadíssima, ela nunca deixava de ser
bonita, pensava ele.
Ela
chamava-se Vittoria, e o menino era seu irmão Gilberto – a quem
ela só chamava “Gil”. Os dois viviam sozinhos em uma pequena
cabana de madeira, num cotidiano comum. Viviam do cultivo de uma
vasta horta, que não só os alimentava como também garantia algum
lucro no mercado da vila mais próxima, que visitavam todos os finais
de semana – a agitação da cidade, com seu comércio ativo e
trânsito incessante de pessoas e veículos, deixava Vittoria
estressada, mas ela adorava ver a expressão de alegria estampada no
rosto de Gil. Não havia nada que ela deixasse de fazer para vê-lo
feliz.
Aquele
era um cotidiano ao qual os dois já haviam se acostumado por cinco
anos, desde que sua mãe havia morrido. O começo havia sido muito
difícil, mas ela foi forte, e conseguiu criar Gil como mãe, pai e
irmã. E algo mais... um segredo de família os mantinha ainda mais
unidos. Um mistério que se estendia por cinco gerações.
Olhou
para o irmão e sorriu. Ele devolveu o sorriso, mas de repente seu
rosto ficou sério, quase apreensivo. Ela notou e quase
instantaneamente ergueu-se e virou-se: alguém os vigiava a uma curta
distância.
Era
um homem forte e escuro, de feições rudes. Seus trajes lembravam um
mercenário, e tinha uma espada atada às suas costas. Não parecia
ser da cidade. Nem um traço de cordialidade em seu rosto.
-
Você é Vittoria?
Por
um instante, ela sentiu-se receosa. Era alguém que já tinha ouvido
falar dela, por mais que ela tenha tentado, durante cinco anos,
encobrir seus rastros. Houve uma paz momentânea que se estendeu por
meses, mas agora parecia ter chegado ao fim. Aquele homem era o tipo
de pessoa que ela mais desprezava: um desafiante.
-
Quem quer saber?
O
homem apresentou-se sem muita cortesia. Era realmente um mercenário,
mas também um espadachim. Estava naquela vida há anos, e
acostumou-se a lutar e lutar até que isso já estava completamente
enraizado em seu ser. Isso não impressionou a jovem. Só depois ele
revelou suas verdadeiras intenções:
-
Ouvi dizer que você tem uma espada “mágica”. Mostre-a para mim.
Não
era um pedido, nem uma ordem. Era um desafio, puro e simples. “Como
ousa?”, pensou ela. Aquele infeliz não tinha ideia
do que queria. Para ela, isso era tão insultuoso quanto pedir-lhe
para mostrar os seios – bem, talvez não tanto, mas ainda assim era
desrespeitoso.
-
Vá embora, pediu. - Não tenho essa espada, e não participo de
lutas.
O
estranho recebeu a desculpa com descrédito. Muitos não acreditavam
mesmo na existência da espada, mas seu instinto não deixava nenhuma
pista escapar, por mais improvável que parecesse. Muitas pessoas
conheciam os dois jovens irmãos, que mais pareciam nômades. E os
contos sobre a tal espada _ Durindana_ sempre se espalhavam por onde
eles passavam. Não podia ser uma simples coincidência, podia? Ele
tinha consciência de que não podia desafiar uma jovem inocente –
era contra seus princípios de espadachim. Se ela não fosse quem ele
procurava, deixaria-a em paz... mas antes, precisava testá-la. Viu o
menino sentado no galho da alta goiabeira e jogou sua isca...
-
Você tem um irmãozinho muito bonitinho... e se algo acontecesse a
ele?
Ela
mordeu a isca.
-
Esse ALGO estaria morto antes de chegar a dez metros dele!
“Fisguei-a”,
pensou o mercenário confiante. Quase sorrindo, ergueu seus braços
rapidamente, à procura de sua espada. Mal tocou o cabo, sentiu algo
afiado levemente encostado em sua garganta. A moça, com uma
expressão assustadoramente calma, materializou(?) um leve e elegante
florete em suas mãos, e apontava-o seguro na direção da garganta
do mercenário.
-
Era isto o que estava procurando? Acha que vale o risco perder sua
vida apenas para satisfazer uma curiosidade? É uma maneira bem
estúpida de morrer, não acha?
O
mercenário não respondeu a nenhuma das perguntas. Estava surpreso
demais para falar qualquer coisa. Então era mesmo uma espada mágica.
Se ele a possuísse, teria o reconhecimento que tanto procurava por
anos. Pensou com ligeireza. Jogou-se para trás, caindo de propósito
no chão. Com uma cambalhota, rolou por cima de si mesmo, quase
sentindo o brilhante florete passar zunindo por suas costas.
Ergueu-se a pelo menos cinco metros da garota, e quando finalmente
pôde sacar sua espada, viu-a correndo em sua direção, com um agudo
brado de guerra. “Como é bela”, pensou. “É uma pena que deva
morrer.”
Ergueu
a espada com as duas mãos e aplicou seu melhor golpe. Mas não pôde
acreditar no que viu. Sua poderosa lâmina estava reduzida à metade,
com um corte tão perfeito que ele só pôde sentir seu efeito quando
já estava tombando no chão, com uma enorme ferida que partia de seu
ombro esquerdo até seu fígado. Estava morto antes mesmo de entender
como.
Vittoria
olhou para o corpo caído aos seus pés, respirando sem controle. Seu
coração continuava acelerando, enquanto seus olhos pareciam querer
saltar de suas órbitas. Não é a primeira vez, dizia para si mesma.
Não é a primeira vez que você mata um homem. Já devia estar
acostumada.
Deixou-se
cair sentada no chão, já sem Durindana em suas mãos. Havia sangue
espirrado em sua camisa e seu colo. Sentiu a ânsia crescendo dentro
dela, a vontade, a terrível necessidade de chorar e chorar até o
choque passar. Olhou para Gil, que no momento da luta havia descido
de sua goiabeira e agora a encarava, igualmente assustado e ofegante.
Abriu os braços e ele correu para ela, às lágrimas. Com isso ela
não resistiu, e desabou também. Eram agora duas criancinhas
desesperadas, como naquela noite cinco anos atrás, quando perderam
sua querida mãe.
“O
que vamos fazer, mana?”, perguntou Gil, ainda soluçante. “Devo
ser forte”, pensou ela. “Por mamãe, por Gil e por mim mesma”.
Quando eles finalmente se acalmaram e as lágrimas pararam de correr,
ela já tinha um plano esquematizado e uma decisão tomada. Doeria
nos dois, mas era preciso fazer aquilo se ambos quisessem permanecer
vivos... e unidos, o que era mais importante.
-
Vá para casa e arrume todas as nossas coisas. Vamos embora daqui
agora mesmo. Ele era só um mercenário, com certeza não deve ter
ninguém para vingá-lo, mas não podemos mais ficar aqui. É hora de
voltarmos à estrada.
-
E quanto a ele?
“Eu
cuido de tudo. Faça o que eu lhe disse.” Gil obedeceu à sua
mãe/irmã. Tremendo, Vittoria começou a examinar o corpo, tentando
encontrar algo de valor. Pelo menos disso ela não sentia nenhuma
culpa. Se fosse ela a vítima, ele faria a mesma coisa... talvez
pior. E o que aconteceria com o pequeno Gil?
“Escória.
Vocês não passam de escória.” Repetia essas pragas sem muita
convicção. Nunca seria uma assassina. Lutava apenas para
proteger-se e ao seu querido irmão. Só isso. Empregar Durindana em
nome de dinheiro e glória? Jamais. Um dia, talvez, ela e Gil
encontrassem paz. Como seus pais tiveram até o dia em que ela
nasceu.
Já
era quase fim da tarde quando ela voltou da floresta. Ocultar um
corpo era muito difícil – pra não dizer repugnante. Gil já
estava sentado na porta da pequena casa, com sua roupa de passeio e
uma mochila pendente de cada ombro. Ela entrou e limpou-se, vestindo
uma nova roupa. Pegou sua mochila e olhou para Gil que tentava
confortá-la com seu tímido e gracioso sorriso. Ela nunca resistia a
ele, e abraçou-o.
Afastaram-se
da casa e voltaram para sua vida de nômades.
De
volta à estrada...
Continua
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