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domingo, 7 de junho de 2020

3 Cards - Parte 1


Por: Vicente Cardoso
Em 02/12/1999

Uma cidadezinha de beira de estrada, no calor da tarde. A paisagem era desolada, dividida em duas cores: o azul do céu sem nuvens, e o quase-laranja do chão árido do deserto, estendendo-se até o alcance da visão. Um veículo de quatro rodas, semelhante a um jipe, aproximou-se da cidade, parando em frente à única construção que não parecia triste e desolada, como todas as outras casas: um saloon.
Lá dentro, música alta e gargalhadas – misturadas com palavrões, gabolices e lances de jogo. Uma típica comemoração da escória, pensou a motorista. Tirou seus óculos sujos como seu rosto e ao sair do carro tentou espanar a poeira de sua roupa, sendo apenas meio bem-sucedida. Entrou no bar e deparou-se com o espetáculo degradante. Uma dúzia de homens espalhados pelo saloon, sentados nas mesas ou nos bancos do bar, bebendo, jogando ou simplesmente narrando suas últimas aventuras. Do andar de cima podiam-se ouvir mais risadas, gritos e gemidos femininos – típicos ruídos de fornicação. (Não que ela não se excitasse ao pensar nessas coisas, mas no momento ela estava ali por outros motivos).
Dirigiu-se até o bar e pediu uma bebida leve. Todos os homens, é claro, já haviam notado sua presença desde que havia passado pela porta. A admiração por seu belo corpo a divertia. Sabia que possuía atributos desejados por muitos homens – e invejados por algumas mulheres. Para realçar sua voluptuosidade natural, trajava peças de couro justíssimas, que expunham apenas seu rosto, seus braços e parte de seu ventre – mas ninguém repara nessas coisas quando se tem seios, coxas e nádegas nas proporções que os homens se acostumaram a rotular como...
- Gostosa! – gritou um dos “cavalheiros”.
Fingiu que não era com ela. Sorriu e dirigiu-se ao barman:
- Estou procurando um homem.
“Veio ao lugar certo, gatinha” disse um sujeito alto e forte, com cara de quem liderava o bando. Sentou-se no banco ao lado dela e começou uma cantada suja e desajeitada. “Definitivamente, esse cara é um desastre com mulheres”, pensou ela. Na certa era do tipo que encontrava prazer apenas com prostitutas – só mesmo sendo paga para perder tempo com um idiota daqueles.
Cansou-se do papo e decidiu ir direto ao assunto. Estava procurando Chacal, o líder de uma gangue de assaltantes de bancos que se encontrava foragido. Mentiu dizendo que sempre havia sentido uma enorme admiração pela audácia e coragem do famoso bandoleiro, e que os relatos femininos sobre sua indiscutível virilidade o haviam transformado num ídolo para ela – alguém para quem ela adoraria se entregar e satisfazer suas mais loucas fantasias. Ao terminar sua atuação, surpreendeu-se com sua inacreditável cara-de-pau.
Seu truque fisgou o marginal. Ele era o próprio Chacal, o bandoleiro mais procurado em cinco estados, matador de policiais e blábláblá. Fez um avanço em direção à jovem, mas ela foi mais rápida; ajoelhou-se à frente dele e começou a acariciar seu membro por cima da roupa. “Você é meu herói! Deixe-me provar minha admiração fazendo-o sentir-se nas nuvens!”. Todos os homens no saloon (incluindo o barman, que pensava já ter visto todo tipo de coisa) ficaram boquiabertos. Teriam atacado a garota mais cedo ou mais tarde, se ela já não tivesse atraído a atenção de seu líder.
Ela não perdeu tempo: iniciou ali mesmo, na frente de todos, uma felação no feliz bandido. “Você é uma profissional, não é? Vadia sem-vergonha...” Inesperadamente, ele soltou um urro de dor – a garota sem o menor aviso cravou seus dentes em um de seus testículos, até sangrar. Enquanto ele caía no chão, segurando seus órgãos, ela ergueu-se e sacou duas pistolas que estavam ocultas sob sua jaqueta, apontando-as a esmo.
- Caçadora de recompensas Classe P-28: Cassandra – identificou-se. Na hora, os bandidos recearam em sacar suas armas – ela era mais rápida, e poderia atirar no primeiro que tentasse erguer sua pistola. E além disso, ela havia derrubado o líder! “Tenho permissão para levar apenas o Chacal! Vocês acham que vale a pena entregarem suas vidas por ele?” desafiou ela, contando com sua experiência sobre o fato dos criminosos serem uma classe desunida e traiçoeira.
Três deles tentaram provar que ela estava errada. Sacaram suas armas e foram mortos sem um instante de hesitação da caçadora. O restante dos baderneiros pensou bem e voltou ao que estavam fazendo – jogar cartas e se embebedar. Chacal estava furioso com a traição de seus companheiros, mas a excessiva dor em seu testículo mastigado o impedia de ofender suas mães, irmãs, filhas e esposas. Quando deu por si, já estava algemado, amarrado e amordaçado sobre o capô do jipe da caçadora. Ela limpou o sangue de seus lábios e queixo, e numa voz doce dirigiu-se ao barman:
- Moço, posso usar seu telefone?

A centenas de quilômetros dali, numa paisagem completamente diferente...
Numa bela floresta, com árvores tão altas que quase cobriam o sol, uma jovem debruçava-se à beira de um córrego. Usava roupas comuns e modestas, típicas de uma camponesa. E fazia algo igualmente típico: lavava suas roupas, esfregando-as com sabão, torcendo-as e batendo-as contra uma pedra, antes de enxaguá-las novamente no riacho. O suor acumulava-se em sua testa e pescoço, mas o esforço expresso em seu rosto não conseguia enfear suas belas feições. Contudo, as múltiplas tarefas domésticas quase a impediam de ser vaidosa. Suas mãos, por exemplo, eram pequenas mas não tinham nada de delicadas: eram calejadas e agarravam firme, após anos fazendo coisas como cozinhar, lavar, passar e carregar mantimentos. Sabia que era bonita, mas não costumava perder tempo pensando nisso. Na verdade, ela precisava terminar sua tarefa enquanto o sol ainda estava alto no céu, para que ela pudesse pôr as roupas para secar e logo depois aprontar o almoço.
A alguns metros dela, um menino sentava-se no galho de uma goiabeira. Era visivelmente mais jovem que ela, apesar da diferença de poucos anos de idade. Ele também vestia-se com modéstia, e carregava no colo algumas goiabas, que mastigava com gosto e sem pressa, enquanto admirava a irmã. Mesmo ocupadíssima, ela nunca deixava de ser bonita, pensava ele.
Ela chamava-se Vittoria, e o menino era seu irmão Gilberto – a quem ela só chamava “Gil”. Os dois viviam sozinhos em uma pequena cabana de madeira, num cotidiano comum. Viviam do cultivo de uma vasta horta, que não só os alimentava como também garantia algum lucro no mercado da vila mais próxima, que visitavam todos os finais de semana – a agitação da cidade, com seu comércio ativo e trânsito incessante de pessoas e veículos, deixava Vittoria estressada, mas ela adorava ver a expressão de alegria estampada no rosto de Gil. Não havia nada que ela deixasse de fazer para vê-lo feliz.
Aquele era um cotidiano ao qual os dois já haviam se acostumado por cinco anos, desde que sua mãe havia morrido. O começo havia sido muito difícil, mas ela foi forte, e conseguiu criar Gil como mãe, pai e irmã. E algo mais... um segredo de família os mantinha ainda mais unidos. Um mistério que se estendia por cinco gerações.
Olhou para o irmão e sorriu. Ele devolveu o sorriso, mas de repente seu rosto ficou sério, quase apreensivo. Ela notou e quase instantaneamente ergueu-se e virou-se: alguém os vigiava a uma curta distância.
Era um homem forte e escuro, de feições rudes. Seus trajes lembravam um mercenário, e tinha uma espada atada às suas costas. Não parecia ser da cidade. Nem um traço de cordialidade em seu rosto.
­ - Você é Vittoria?
Por um instante, ela sentiu-se receosa. Era alguém que já tinha ouvido falar dela, por mais que ela tenha tentado, durante cinco anos, encobrir seus rastros. Houve uma paz momentânea que se estendeu por meses, mas agora parecia ter chegado ao fim. Aquele homem era o tipo de pessoa que ela mais desprezava: um desafiante.
- Quem quer saber?
O homem apresentou-se sem muita cortesia. Era realmente um mercenário, mas também um espadachim. Estava naquela vida há anos, e acostumou-se a lutar e lutar até que isso já estava completamente enraizado em seu ser. Isso não impressionou a jovem. Só depois ele revelou suas verdadeiras intenções:
- Ouvi dizer que você tem uma espada “mágica”. Mostre-a para mim.
Não era um pedido, nem uma ordem. Era um desafio, puro e simples. “Como ousa?”, pensou ela. Aquele infeliz não tinha ideia do que queria. Para ela, isso era tão insultuoso quanto pedir-lhe para mostrar os seios – bem, talvez não tanto, mas ainda assim era desrespeitoso.
- Vá embora, pediu. - Não tenho essa espada, e não participo de lutas.
O estranho recebeu a desculpa com descrédito. Muitos não acreditavam mesmo na existência da espada, mas seu instinto não deixava nenhuma pista escapar, por mais improvável que parecesse. Muitas pessoas conheciam os dois jovens irmãos, que mais pareciam nômades. E os contos sobre a tal espada _ Durindana_ sempre se espalhavam por onde eles passavam. Não podia ser uma simples coincidência, podia? Ele tinha consciência de que não podia desafiar uma jovem inocente – era contra seus princípios de espadachim. Se ela não fosse quem ele procurava, deixaria-a em paz... mas antes, precisava testá-la. Viu o menino sentado no galho da alta goiabeira e jogou sua isca...
- Você tem um irmãozinho muito bonitinho... e se algo acontecesse a ele?
Ela mordeu a isca.
- Esse ALGO estaria morto antes de chegar a dez metros dele!
“Fisguei-a”, pensou o mercenário confiante. Quase sorrindo, ergueu seus braços rapidamente, à procura de sua espada. Mal tocou o cabo, sentiu algo afiado levemente encostado em sua garganta. A moça, com uma expressão assustadoramente calma, materializou(?) um leve e elegante florete em suas mãos, e apontava-o seguro na direção da garganta do mercenário.
- Era isto o que estava procurando? Acha que vale o risco perder sua vida apenas para satisfazer uma curiosidade? É uma maneira bem estúpida de morrer, não acha?
O mercenário não respondeu a nenhuma das perguntas. Estava surpreso demais para falar qualquer coisa. Então era mesmo uma espada mágica. Se ele a possuísse, teria o reconhecimento que tanto procurava por anos. Pensou com ligeireza. Jogou-se para trás, caindo de propósito no chão. Com uma cambalhota, rolou por cima de si mesmo, quase sentindo o brilhante florete passar zunindo por suas costas. Ergueu-se a pelo menos cinco metros da garota, e quando finalmente pôde sacar sua espada, viu-a correndo em sua direção, com um agudo brado de guerra. “Como é bela”, pensou. “É uma pena que deva morrer.”
Ergueu a espada com as duas mãos e aplicou seu melhor golpe. Mas não pôde acreditar no que viu. Sua poderosa lâmina estava reduzida à metade, com um corte tão perfeito que ele só pôde sentir seu efeito quando já estava tombando no chão, com uma enorme ferida que partia de seu ombro esquerdo até seu fígado. Estava morto antes mesmo de entender como.
Vittoria olhou para o corpo caído aos seus pés, respirando sem controle. Seu coração continuava acelerando, enquanto seus olhos pareciam querer saltar de suas órbitas. Não é a primeira vez, dizia para si mesma. Não é a primeira vez que você mata um homem. Já devia estar acostumada.
Deixou-se cair sentada no chão, já sem Durindana em suas mãos. Havia sangue espirrado em sua camisa e seu colo. Sentiu a ânsia crescendo dentro dela, a vontade, a terrível necessidade de chorar e chorar até o choque passar. Olhou para Gil, que no momento da luta havia descido de sua goiabeira e agora a encarava, igualmente assustado e ofegante. Abriu os braços e ele correu para ela, às lágrimas. Com isso ela não resistiu, e desabou também. Eram agora duas criancinhas desesperadas, como naquela noite cinco anos atrás, quando perderam sua querida mãe.
“O que vamos fazer, mana?”, perguntou Gil, ainda soluçante. “Devo ser forte”, pensou ela. “Por mamãe, por Gil e por mim mesma”. Quando eles finalmente se acalmaram e as lágrimas pararam de correr, ela já tinha um plano esquematizado e uma decisão tomada. Doeria nos dois, mas era preciso fazer aquilo se ambos quisessem permanecer vivos... e unidos, o que era mais importante.
- Vá para casa e arrume todas as nossas coisas. Vamos embora daqui agora mesmo. Ele era só um mercenário, com certeza não deve ter ninguém para vingá-lo, mas não podemos mais ficar aqui. É hora de voltarmos à estrada.
- E quanto a ele?
“Eu cuido de tudo. Faça o que eu lhe disse.” Gil obedeceu à sua mãe/irmã. Tremendo, Vittoria começou a examinar o corpo, tentando encontrar algo de valor. Pelo menos disso ela não sentia nenhuma culpa. Se fosse ela a vítima, ele faria a mesma coisa... talvez pior. E o que aconteceria com o pequeno Gil?
“Escória. Vocês não passam de escória.” Repetia essas pragas sem muita convicção. Nunca seria uma assassina. Lutava apenas para proteger-se e ao seu querido irmão. Só isso. Empregar Durindana em nome de dinheiro e glória? Jamais. Um dia, talvez, ela e Gil encontrassem paz. Como seus pais tiveram até o dia em que ela nasceu.
Já era quase fim da tarde quando ela voltou da floresta. Ocultar um corpo era muito difícil – pra não dizer repugnante. Gil já estava sentado na porta da pequena casa, com sua roupa de passeio e uma mochila pendente de cada ombro. Ela entrou e limpou-se, vestindo uma nova roupa. Pegou sua mochila e olhou para Gil que tentava confortá-la com seu tímido e gracioso sorriso. Ela nunca resistia a ele, e abraçou-o.
Afastaram-se da casa e voltaram para sua vida de nômades.
De volta à estrada...


Continua

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